A Covid-19 e sua empresa: é preciso agir já

Enquanto a preocupação primária continua sendo a saúde da população e a adoção de medidas para reduzir as taxas de contaminação pelo COVID-19 e debelar no menor espaço de tempo a pandemia, poucas dúvidas existem que o cenário político-econômico que se avizinha é de forte recessão. Para sobreviver, as empresas terão de atrelar uma forte gestão de caixa, capacidade gerencial do negócio – atrelada a avaliação jurídica-estratégica sobre os efeitos da crise.

Pela natureza, dimensão e natureza desta crise, que tem levado à redução significativa ou interrupção abrupta – voluntária ou por determinação das autoridades – das atividades empresariais em uma escala somente vista em tempos de guerra, espera-se que seus efeitos se ramifiquem em várias áreas e aspectos da atividade empresarial e humana, gerando impactos relevantes nas relações interpessoais e jurídicas. Como é comum em cenários de crise sistêmica, o primeiro passo é reconhecer a existência da crise e a necessidade da análise sobre como ela impactará as organizações.

É neste cenário, de provável recessão econômica, e acrescido de uma enorme complexidade dos temas que as empresas enfrentarão em paralelo, dentre outros desafios, (i) forte pressão na gestão orçamentária e (ii) aumento significativo das demandas de apoio jurídico-estratégico na negociação de contratos e litígios, com clientes, fornecedores e – até mesmo, empregados e colaboradores.

Para endereçar estes desafios, um adequado diagnóstico multidisciplinar dos potenciais impactos provenientes da crise permitirá um melhor planejamento das ações e estratégias a serem perseguidas e implementadas imediatamente e até que as atividades retornem ao mínimo de normalidade – que ainda não temos previsão de horizonte.

Neste contexto, um diagnóstico deverá contar com uma análise detalhada dos termos e condições que regem as principais relações jurídicas da empresa, notadamente aquelas mais relevantes para a preservação da sua liquidez no curto e médio prazo. No caso de contratos cujos objetos impliquem em custos e receitas variáveis, o cuidado deve ser redobrado face ao potencial de impacto que pode trazer para as empresas, especialmente quando envolverem ente público.

No que tange às relações de emprego, o Governo Federal acaba de editar a Medida Provisória 927/2020 – recebida com muitas críticas – que tem por principal objetivo a flexibilização de algumas regras trabalhistas durante a pandemia, possibilitando a redução dos custos das empresas neste momento agudo da crise e a a preservação dos empregos. Faculta-se, por exemplo, a alteração do regime de trabalho presencial para o regime de teletrabalho, a antecipação de férias (com o diferimento do adicional de 1/3 até a data do pagamento do 13º), a antecipação do gozo de feriados não religiosos e até mesmo o que se denomina na MP como “direcionamento do empregado para qualificação”, mas que na prática deverá representar a possibilidade de suspenção do contrato de trabalho, desde que observada algumas condições.

As alterações no contrato de trabalho durante o período da pandemia poderão ser pactuadas por meio de acordos individuais celebrados entre o empregado e empregador.

Nos contratos ou instrumentos de financiamento, o principal foco deverá estar nas cláusulas que tratam das hipóteses de vencimento antecipado da obrigação de pagar e nos dispositivos que tratam das situações em que as instituições financeiras ou provedores de crédito ficam desobrigadas de realizar o desembolso de recursos.

O vencimento antecipado da obrigação financeira normalmente ocorre na quebra ou inobservância, pela empresa, de uma obrigação contratual de fazer ou não fazer, comumente conhecida como covenant, ou inveracidade de declarações e garantias prestadas no momento da contratação ou dos desembolsos. Um covenant muito encontrado em instrumentos financeiros é a obrigação de a empresa manter um determinado nível de dívida liquida em relação ao seu EBITDA (1), durante o período de vigência do contrato, por ser um bom indicador da capacidade de geração de caixa da empresa. Com a redução abrupta dos faturamentos, é possível que muitas empresas não consigam cumprir a obrigação assumida com o financiador, podendo acarretar o vencimento antecipado da dívida. O vencimento antecipado de uma dívida, por sua vez, poderá gerar o vencimento de outras obrigações financeiras da empresa, levando-a a um cenário de insolvência. Urge, portanto, buscar junto aos agentes financeiros uma solução que assegure a preservação da solvabilidade do devedor e preserve ao credor o cumprimento do fluxo de pagamentos de principal e juros da dívida em situações como esta.

Já a suspensão do desembolso dos recursos pelo financiador decorre das denominadas cláusulas MAC (2) ou MAE (3), que regulam as implicações jurídicas provenientes da ocorrência de eventos que alteram significativamente as circunstâncias e as condições em que a contratação ocorreu. Estas cláusulas, além de constarem normalmente em instrumentos contratuais financeiros, são também muito comuns em contratos de compra e venda de empresas e acordos de investimento.

No caso de contratos de longo prazo, ou de trato sucessivo, há que se analisar, ainda, as hipóteses de exclusão de responsabilidade previstas em lei ou contrato, como por exemplo os dispositivos que tratam da ocorrência de caso fortuito ou força maior. O caso fortuito ou força maior, nos termos do art. 393 do Código Civil, caracteriza-se como um evento cujo efeito não era possível evitar ou impedir. Como regra geral, o acontecimento de um evento fortuito ou força maior exime o devedor da obrigação de responder pelos prejuízos. A Medida Provisória 927/2020 acima mencionada, em seu artigo 1º reconheceu a recente crise como uma hipótese de força maior (4), para fins trabalhistas, fortalecendo o uso desta hipótese de exclusão da responsabilidade em outras áreas.

Ainda, a legislação brasileira oferece às partes, com base na teoria da imprevisão, a possibilidade de rescindir ou revisar os contratos nos casos de alteração superveniente e imprevisível da conjuntura social-econômica, que altere o equilíbrio econômico financeiro da relação jurídica contratual. Esta teoria, está positivada nos artigos 478 a 480 do Código Civil.

Já no campo das contratações com o poder público, as diversas medidas anunciadas e já implementadas, pelos diversos órgãos da Administração Pública, provavelmente afetarão o equilíbrio econômico-financeiro de alguns contratos públicos. Um bom exemplo desta hipótese é a provável queda das receitas dos concessionários de serviços públicos de transporte, derivada da adoção das medidas de distanciamento social pelas diversas esferas públicas. O desequilíbrio gerado por essas medidas ensejará a necessidade da repactuação da avença original, aplicando-se a teoria do fato do príncipe e a própria teoria da imprevisão. Importante que o reequilíbrio seja concretizado no menor espaço de tempo possível, sob pena destes prestadores de serviço público tornarem-se insolventes e agravar ainda mais impacto social das medidas preventivas contra a pandemia.

Acreditamos que o caminho do reequilíbrio amigável das condições contratuais, tornando as relações mais equitativas, seja o melhor caminho e deve ser perseguido prioritariamente pelas empresas e Administração Pública.

Contudo, ainda que a solução negociada e consensada deva ser sempre priorizada – e o fato da crise atingir um espectro extremamente amplo das atividades econômicas facilitará esta alternativa – para que os direitos sejam resguardados e protegidos e exposições mitigadas, é imprescindível (i) que se documente o rol destas medidas que as empresas foram compelidas a adotar no combate à pandemia, tenham sido elas voluntariamente adotadas ou aplicadas por força de determinação legal, (ii) que se documente todas as ações empresariais adotadas para mitigar os efeitos adversos decorrentes das referidas medidas, e (iii) se mensure o impacto das medidas nas receitas e custos da empresa.

Estas medidas permitirão que as ações jurídicas-empresariais necessárias sejam identificadas o quanto antes e com um maior nível de assertividade, permitindo que ações pragmáticas sejam adotadas para preservar o patrimônio tangível e intangível das empresas.


(1) Sigla em inglês para Earning before interest, taxes, depreciation and amortization. Em português, Lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização.

(2) Sigla em inglês para Material Adverse Change. Em português, Mudança Adversa Material.

(3) Sigla em inglês para Material Adverse Effect. Em português, Efeito Adverso Material.

(4) Art. 1o Esta Medida Provisória dispõe sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo no 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), decretada pelo Ministro de Estado da Saúde, em 3 de fevereiro de 2020, nos termos do disposto na Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Parágrafo único. O disposto nesta Medida Provisória se aplica durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo no 6, de 2020, e, para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto- Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943.

Por Mauricio Dantas Bezerra

09/04/20

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