Em julho do ano passado a sociedade brasileira celebrou a publicação do Novo Marco Legal do Saneamento (Lei n. 14.026/2020), que introduziu relevantes modificações nas regras que tratam dos serviços de saneamento no país. Uma das mais festejadas inovações inseridas pelo novo marco foi o claro incentivo à ampla participação da iniciativa privada no setor, positivada pela obrigatoriedade de que a concessão dos serviços a terceiros seja sempre precedida de processo competitivo (licitação) e pela vedação expressa à celebração de novos contratos de programa e a prorrogação dos atualmente vigentes.
Os contratos de programa são os instrumentos pelos quais os serviços de saneamento até então eram delegados às companhias estaduais de saneamento sem prévia licitação e que, nas últimas décadas, permitiram a essas sociedades ampliar suas bases de atuação em detrimento de uma maior participação das empresas privadas.
Para que se tenha uma ideia, até a edição do Novo Marco Legal do Saneamento, apenas 6% dos serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto estavam delegados à iniciativa privada. Menos de um ano depois, após o grande sucesso dos leilões promovidos pelos estados de Alagoas, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e Rio de Janeiro, a participação das empresas privadas no setor mais que dobrou.
Não se discute que a maior participação da iniciativa privada é essencial e trará para o setor maior eficiência e produtividade, além de parcela significativa do necessário capital para fazer frente aos cerca de R$ 650 bilhões estimados de investimentos necessários à universalização dos serviços de água e esgoto até 2033.
Contudo, o governo federal e suas agências, que vêm exercendo um relevante papel no desenvolvimento do setor e na adoção de medidas que promoverão a universalização dos serviços, exageraram na dose quando da edição do Decreto n°. 10.710, de maio deste ano. A normativa fixa os mecanismos para que as prestadoras de serviços comprovem a capacidade econômico-financeira para o cumprimento das metas de universalização estabelecidas no Novo Marco Legal do Saneamento.
O decreto – aparentemente influenciado pela visão dominante no governo federal de que os serviços devem ser prestados apenas por empresas pertencentes à iniciativa privada – criou restrições que tornarão muito difícil que parcela relevante das companhias estaduais atendam aos requisitos normativos e, como resultado, terão seus contratos declarados irregulares.
As companhias estaduais historicamente frustraram as expectativas de investimento, atendimento e muitas vezes prestam serviços de baixa qualidade. As empresas privadas, por sua vez, possuem maior capacidade de investimento e melhores índices de eficiência e produtividade. É exatamente por essa razão que é muito bem-vinda uma maior participação dos operadores privados.
Por outro lado, não nos parece adequado o resultado aparentemente perseguido pelo decreto de forçar a retirada das companhias estaduais do setor. É um erro colocar a ideologia sobre a realidade fática de anos de atuação das companhias estaduais.
A questão que mais chama atenção é a classificação pelo decreto das Parcerias Público-Privadas (PPPs) como uma das modalidades de contratos de subdelegação. O decreto veda as companhias estaduais de utilizarem na comprovação da sua capacidade econômico-financeira novos contratos de subdelegação (e celebrados após 16 de julho de 2021), quando excederem o limite de 25% do valor do contrato original.
Assim, essa regra praticamente retirará do rol de potenciais modelos de delegação dos serviços à iniciativa privada o relevante mecanismo das PPPs. É provável que importantes projetos nessa modalidade que estavam em curso sejam postergados, a exemplo do projeto em curso pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) e BNDES, com investimentos estimados em mais de R$ 8 bilhões e que beneficiará cerca de 4 milhões de cearenses.
Não se deve desviar do principal objetivo do Novo Marco Legal do Saneamento: a universalização do acesso aos serviços no menor espaço de tempo possível e pela menor tarifa possível. As dificuldades e restrições impostas pelo decreto às companhias estaduais podem pôr em risco esse objetivo. A provável consequência será o aumento das outorgas mínimas demandadas nos processos licitatórios e o aumento das tarifas necessárias para dar viabilidade econômica aos projetos. Não deve o investidor de longo prazo esquecer neste momento um relevantíssimo stakeholder ou parte interessada, o usuário do serviço.
A polarização do debate político-ideológico não trará benefícios para o setor e para a população brasileira, principalmente para a que ainda não foi atendida pelos relevantes serviços de água e esgoto. A intenção de sacar as companhias estaduais do setor não deve prevalecer sobre a racionalidade e sobre a missão de universalizar os serviços no menor espaço de tempo. Parafraseando o médico alemão Paracelso: “A dose certa diferencia um veneno e um remédio”.
*Por Mauricio Dantas Bezerra, sócio da VMB Jurídica, membro da Comissão de Infraestrutura da OAB e mestre em Direito (LLM) pela Universidade Warwick (Reino Unido)
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