A Covid-19 e a Gestão de Crises Empresariais

A já clássica metáfora do “cisne negro” de Nassim Taleb tem a persistência própria dos conceitos que aliam criatividade e agudez analítica para explicar fenômenos relevantes. Eventos imprevisíveis de impactos disruptivos são inexoráveis e provocam crises de grandes proporções.

Em obra subsequente, que traz o não menos potente conceito do “antifragil”, o mesmo Taleb trata de sistemas que não apenas resistem a volatilidades, mas que sobretudo se fortalecem nesses cenários. Diante da impossibilidade de se evitar os “cisnes negros”, uma boa estratégia seria a construção de sistemas que se fortaleçam com as crises.

O conceito de “antifragil” é reservado a sistemas com características muito peculiares, não facilmente replicáveis nos modelos de negócio e de gestão da maioria das companhias. Também a própria caracterização da pandemia da Covid-19 como um típico “cisne negro” é discutível.

Sem prejuízo, a análise desenvolvida por Taleb constitui uma referência interessante para as companhias repensarem como lidam com suas crises. E a experiência da Covid-19 cria um cenário inusitado de anormalidades que aumenta a probabilidade do surgimento de crises. Portanto, o momento é oportuno para se pensar a respeito.

Bons sistemas de gestão de crises empresariais devem ser construídos sobre alguns alicerces principais, que serão determinantes para a sua eficácia.

Um primeiro alicerce é o envolvimento ativo do primeiro escalão de executivos e do conselho de administração. Em crises graves, o comando do processo e as decisões deverão ser da diretoria executiva da companhia, em muitos casos com a participação, monitoramento ou mesmo condução do próprio conselho de administração.

Além disso, é fundamental se estabelecer um tone at the top que conduza à criação de uma cultura para lidar com crises. Na pressão dos acontecimentos, as decisões serão tomadas sem o tempo de análise das condições normais. Nesses contextos, as pessoas tendem a agir com base em impulsos, condicionamentos e emoções, daí por que precisam estar muito bem treinadas.

O treinamento adequado constitui um segundo alicerce de um bom sistema de gerenciamento de crises. Para além de aptidões, criatividade e desenvoltura pessoal, a gestão de crises é essencialmente uma atividade de gestão de processos, que depende de muita organização e coordenação.

É recomendável a constituição de comitês de crise ad hoc. Tipicamente, os comitês serão coordenados por um executivo da linha de gestão, com a presença de executivos das áreas de apoio (sendo mandatórias as áreas de comunicação, financeira, jurídica, relações governamentais e recursos humanos). Apenas a exposição contínua a cenários realistas poderá capacitar profissionais tão diversos a atuarem com eficiência nesses contextos.

Um terceiro alicerce importante é o estabelecimento de uma governança que se aproxime da maneira como cada companhia se organiza. A simples importação de modelos pré-definidos não é a melhor solução. Quanto mais os responsáveis pela gestão do negócio se envolverem diretamente, melhores tendem a ser os resultados.

Uma ressalva importante a essa regra se aplica aos casos em que se identifique o risco de comportamentos tendentes à autopreservação, que podem levar a situações de conflito de interesses. Também merece atenção as situações em que, pela proximidade com o assunto, a pessoa se encontre abalada emocionalmente, com sua capacidade de julgamento comprometida.

Por fim, o envolvimento de assessores externos especializados é também um alicerce fundamental. As crises exigem o emprego de recursos superiores aos necessários para as atividades normais, de forma transitória, e com escopo e natureza bem definidos. Com essas características, são situações mais bem atendidas pela mobilização de recursos externos. Treinamentos não substituem a experiência específica de firmas e profissionais especializados.

Com a implementação desses alicerces, as companhias conseguirão debelar os sintomas da crise e voltar à normalidade mais rapidamente e com um menor custo. Entretanto, a questão que se coloca é como as companhias podem usar as crises para buscar modelos de gestão e de negócio mais “antifrageis”, que se beneficiem com as volatilidades futuras.

Aqui o objetivo será identificar as características estruturais que fragilizam o negócio. Esse tipo de análise, em meio ao caos e urgência, quase sempre escapa às companhias, mesmo porque geralmente não fazem parte das cartilhas de gestão de crises. É necessário que essas cartilhas incorporem esta dimensão, ao lado das atividades tradicionais de combate à crise em si.

Isso pode ser alcançado, por exemplo, por meio da participação de executivos de planejamento estratégico nas reuniões do comitê de crise. Ou mesmo incumbindo executivos das demais áreas envolvidas com a função precípua de olhar o negócio no longo prazo. Há múltiplas formas de se fazer, cuja eficácia dependerá da maneira como a companhia é organizada, tipo da crise etc.

Um exemplo vivido de perto e executado na crise da Operação Lava Jato ilustra bem o ponto. Como se sabe, para algumas companhias a Lava Jato representou uma crise de natureza reputacional de enormes proporções. Originou-se da prática de atos de corrupção, mas foi severamente agravada pela inexistência de programas de compliance adequados nessas companhias.

Nesse passo, a implementação de sofisticados programas de compliance, juntamente com medidas de aprimoramento da governança corporativa, se revelaram uma estratégica tipicamente “antifragil” adotada pelas companhias. Com essas medidas, a volatilidade trazida pelos novos padrões inaugurados no esteio da edição da Lei 12.846/13 (anticorrupção), deixou de constituir ameaça e passou a representar oportunidade de criação de valor.

Ao invés de resistir e reagir, foi fundamental a percepção pelas companhias de que a decisão “antifragil” nesses momentos consiste em aprender com o fracasso e reinventar rapidamente com base na experiência vivida. No futuro, denúncias de corrupção poderão ser recebidas e processadas articuladamente, reduzindo desvios e ineficiências internas, reforçando os laços de cooperação com autoridades e a relação com os principais stakeholders, com valioso ganho reputacional para a companhia. A volatilidade que seria um problema no sistema anterior (frágil), se tornou uma vantagem após os ajustes no sistema (“antifragil”).

Adicionalmente, as mudanças foram efetuadas ainda no curso das investigações internas, o que possibilitou às companhias colherem resultados positivos tangíveis já nas negociações dos acordos de leniência, refletidos nos chamados “créditos de colaboração”. Este é outro típico exemplo de um sistema se beneficiando da volatilidade.

Não é recomendável deixar a atividade de coleta de informações, análise e adoção de medidas para depois da desmobilização do comitê de crise. Muitas informações se perderão ou serão simplesmente contaminadas pelas irracionalidades cognitivas sempre presentes no comportamento humano. Não menos provável é que, com o retorno à normalidade, a atividade se perca frente às outras prioridades do negócio.

Seja qual for o instrumento utilizado, o mais relevante é que a crise não seja encarada apenas como uma anormalidade a ser combatida com o reforço e aprimoramento dos modelos de negócio e de gestão existentes (resiliência). Acreditando no senso comum de que toda crise é também uma oportunidade, os sistemas de gestão devem ser adaptados para buscarem não apenas resiliência, mas também para identificarem as oportunidades de construção de modelos mais capazes de se beneficiarem da volatilidade futura (“antifragil”).

Artigo publicado no JOTA.

Por Gustavo Sampaio Valverde

04/05/20

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